OS MEUS OITENTA ANOS
Há três dias completei oitenta anos. Foi o
momento em que aceitei que a vida que vivi, nada teve a ver com aquela que pretendi
viver. Julguei ter sido filha placidamente obediente e conformada com as regras
que me foram impostas Falso. Aceitei-as pela minha tendência para o “mais vale
viver sossegada do que discutir “E por medo, medo puro e simples da violência
da Senhora Minha Mãe, que não só usava a sua pesada mão em todas as ocasiões
necessárias, como gritava comigo, o que me deixava aterrada. Ainda hoje os
monólogos gritantes e descontrolados deixam-me paralisada, de palavras e
atitudes
Casei-me como
casavam maior parte das raparigas dos anos 40/50.Para maior parte dos pais da
média burguesia o destino das filhas era casar. Casei-me sem grandes paixões, mas
encantada sim com o meu Sindbad bem-falante, vindo dum polo oposto ao que eu
estava habituada que comparado aos meus amigos, que tratavam as namoradas como
gostariam que lhes tratassem as irmãs era fascinante para a moça provinciana e
convencional que eu era. Vivi no paraíso durante alguns anos, enquanto circunstancias
da vida, não deram o primeiro abanou nas nossas relações. Durante a nossa vida
de casados, por culpa de ambos, tivemos bons e maus bocados e enfrentámos
situações que ultrapassamos por conveniência. Mas ultrapassei-os mesmo? Não.
Bons e maus bocados permanecem dentro de mim com se eu tivesse tido dois maridos.
Um com quem passei dos melhores momentos da minha vida, outro cujos actos deixaram
sequelas no meu espirito que o mantem a uma enorme distância da companheira que
ao fim de 61 anos de casada, eu deveria ser. Sou apenas uma sócia com uma quota
muito baixa nesta firma que mantemos juntos.
Tive filhos, que amei como maior parte dos pais amam os filhos,
porque fazem parte daquilo a que socialmente chama-mos família nuclear. Casei demasiado
nova, tive filhos demasiado nova, sem estar preparada para ser esposa e mãe. É
verdade que os amei incondicionalmente, com todos os seus defeitos e sua
maneira de ser, para mim, difícil às vezes de aceitar, mas não tanto como eles desejariam.
Não os apoiei em situações onde deverei ter intervindo. Mas também em algumas ocasiões,
eles não me apoiaram como eu gostaria.
Tive netos que me deram e dão ainda imensas
alegrias e têm algum carinho por mim, suponho eu. Mas nunca fui uma avó
confidente e camarada, apesar de nos entendermos muito bem. Tive bisnetos que
representam para mim grande satisfação pois sinto que continuarei neles. Mas continuarei?
Do que irão lembrar-se desta bisavó longínqua e de quem nada conhecem?
Tive amigos, esses sim, em inteira comunhão
comigo porque sempre me aceitaram como eu era, não exigindo de mim perfeição;
tal como eu só quis deles a sua amizade.
Sempre lamentei que as manias burguesas da minha mâe,não permitissem que frequentasse
o liceu. Nessa altura nem eu própria desejava tirar qualquer curso. Queria apenas
aprender mais. É verdade que tive uma professora excelente que vinha três vezes
por semana dar-me lições de francês. Era uma pessoa culta, inteligente e acima
de tudo muito humana, que tentou valorizar em mim tudo o que ela achava que eu seria capaz
É claro que não foi no dia em que completei oitenta anos
que encarei esta realidade. Há muito que o meu acordar traz consigo uma subtil
sensação de angustia, umas sombras invisíveis que então me obrigam a meditar. E
vêm-me sempre à memória um pensamento de Samorset Maughan “A vida
dum Homem como um diário onde ele pretendia escrever uma coisa e escreve outra.
E o seu ponto mais humilhante é quando compara o que escreveu com o que
desejaria ter escrito”
Não
digo que seja o ponto mais humilhante da minha vida comparar o que desejava ter
vivido com o que vivi. Mas é triste, porque por muito que desejemos, nada
podemos remediar.Não deixarei de apreciar o resto dos anos que o Criador me
conceder por ter descoberto esta amarga. Verdade Mas vou procurar fazer as
coisas o melhor que me for possível, amar a minha gente como se
gosta dum amigo de quem não podemos tirar partido mas mesmo assim gostamos
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