A VERGONHA DOS JUSTOS

Não garanto que todas as pessoas que viajavam naquela carruagem fossem justos, mas aparentavam ser pessoas decentes e todos olhavam com desaprovação o rapaz cabeludo, tatuado, arrogante, cujos pés sujos, enfiados em sandálias de cabedal, repousavam ostensivamente no assento fronteiro Este, mastigando pastilha elástica, acomodava os tais pés no banco, roçando-os no estofo. Uma senhora que poderia ser avó dele, se é que tal espécime merecia ter uma avó, disse-lhe com a autoridade que a idade lhe conferia: -jovem,tire os pés do banco. Quando alguém se sentar, vai sujar-se. O jovem, mais homem que jovem, continuou com os pés ainda mais estendidos sobre o banco e respondeu: -vá-se lixar!


E nós ali, calados, comprometidos, eu mais comprometida que ninguém, por não ter avançado em defesa da velha senhora. Por cobardia, pelo medo de ser agredida verbalmente. Olhávamos uns para os outros envergonhados perante as lágrimas silenciosas que escorriam pelo seu rosto, num silêncio que nos incomodava. Subitamente, uma voz infantil soou, bem alto, sem vergonha, apontando com o pequeno dedo o rapaz que fingia olhar pela janela: -ó mãe, o que aquele homem fez, não se faz pois não? A mãe, bem jovem, respondeu-lhe também bem alto. - não filho, não se faz.
Chegamos a Paço de Arcos, muitos de nós saímos, incluindo a nossa corajosa companheira de viagem e o rapaz continuou viagem mas já sem os pés no assento.

Não tenho a pretensão de acreditar que o fez por súbita vergonha ou consciência da sua acção, porque gente daquela, é coisa que não tem. Quando alguém abdica voluntariamente de tudo aquilo que nos eleva, a cortesia, a paciência, a tolerância, desce ao primitivo estado de animal. E algumas vezes, procede bem pior que eles.

Muitos de nós, pais, avós, amigos, começamos a tolerar em demasia: a rudeza dos nossos semelhantes e talvez a nossa própria, incentivada por aquilo a que chamamos novos tempos. Vamos falando calão, ou porque achamos graça, ou para não parecermos antiquados aos nossos jovens. Vamos contemporizando com o palavrão ligeiro, sem atentarmos que atrás dele virão os pesados. Permitimos a falta de cortesia para com os mais velhos, por vezes somos nós próprios a dar-lhes o exemplo. Toleraramos situações equivocas, mesmo que em nossa consciência não concordemos com elas. Esta nossa cobardia pode custar-nos a perda do que aprendemos através de gerações.
Desta cena, tive uma só consolação:é que maior parte de nós ainda sentiu vergonha.




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